Senta que lá vem textão…
(pode conter spoilers)
Eu não sabia se valia a pena escrever esse texto, porque muito do que será dito aqui já foi dito por outras pessoas em outros lugares, mas como profissional psi, e pelo fato de eu ainda estar incomodada vamos lá…
Em primeiro lugar, acho que a série teve algum mérito em trazer para o centro das discussões algumas questões muito importantes principalmente a questão do bullying, do estupro e do suicídio. Não vou me ater às duas primeiras porque achei que a abordagem a respeito delas não foi de todo ruim. Sobre a questão do suicídio precisamos conversar.
O desenvolvimento dessa temática e o desenrolar da história da Hannah foi tratada, acredito eu, de uma maneira absurdamente irresponsável. Para as pessoas que se identificam com os “motivos”, a série pode ser inócua ou trazer algumas reflexões importantes. Para as pessoas que se identificam com a Hanna a experiência da série pode ser devastadora. É claro que ninguém está dizendo que as pessoas são totalmente influenciáveis e passivas a respeito da própria vida e dos próprios desejos, ou que a série despertaria algo que nunca esteve ali, mas como toda forma de arte ela pode tocar fundo em algumas feridas que podem se tornar mais difíceis de serem curadas.
A premissa da série já traz na verdade o maior perigo. Dramatiza no real (de forma razoavelmente bem-sucedida) algo que está presente, na maioria das vezes inconscientemente, nas motivações de suicidas reais: o desejo, ou a esperança, de se vingar do outro com o próximo extermínio (de forma mais “branda” isso aparece em diversos tipos de sofrimento). Geralmente há um grau muito elevado de agressividade (sem entrar no mérito se é “justificável” pela realidade ou não) que, por diversas razões, não consegue ser dita ou escoada para fora, encontrando descarga no próprio indivíduo.
Na série esse processo é completamente romantizado, justificado e de certa forma o espectador é levado a crer que aquela realmente era a única saída. Ela se torna mártir para fazer com que seus “algozes” se responsabilizem e se compadeçam do seu sofrimento. Ou seja, ela atua algo que deveria ter sido dito, e em nenhum momento a série apresenta um caminho alternativo a isso. A única tentativa de pedido de ajuda feita por ela falha e esse é a última e derradeira decepção dela com o mundo e com a vida. Mas de maneira alguma as possibilidades dela se encerraram ali, e é justamente essa oportunidade que a série desperdiça. Se o objetivo da história era ajudar pessoas que se encontram nessa situação, aqui eles enterraram essa chance.
O fato de as ligações para o CVV terem aumentado nesse período pode ser explicado de várias maneiras e, na minha opinião, essa “conscientização” não vale o risco desse tipo de exposição. A forma exageradamente gráfica como a cena derradeira é retratada é praticamente um manual de instruções e, principalmente para sobreviventes de tentativas anteriores, a exposição a uma cena desse tipo é uma experiência que não pode ser menos do que extremamente dolorosa. Os avisos presentes no início dos capítulos finais devem ter sido tão eficazes quanto as fotos presentes no verso dos maços de cigarro.
A dor de existir existe em todos nós, de formas e com intensidades diferentes. A adolescência em especial é um período de transição que em algum grau é traumático para todos nós. Situações traumáticas são difíceis de serem assimiladas, tanto pela intensidade quanto pela impossibilidade de simbolizar o que foi vivido. Atuar esse sofrimento é uma forma de não pensá-lo, de não vive-lo e de, se não superá-lo, ao menos torna-lo suportável. É uma das formas, mas com certeza não é a única. Então para quem não assistiu à série com receio dos gatilhos que pode despertar, recomendo fortemente que não assista.
Responsabilizar as pessoas pelos atos que cometeram é muito diferente de responsabilizá-las pelo próprio sofrimento. Esse, para o bem ou para o mal, é exclusivamente nosso e no final das contas somos nós que teremos que responder por ele e encará-lo.
Mesmo que esse sofrimento pareça insuperável, insuportável, indizível, busque ajuda!
É difícil quando sentimos que estamos completamente sozinhos e vazios, ou que somos o mais desafortunado dos seres humanos, mas dar o primeiro passo pode ser a diferença entre viver e morrer, literalmente. Depois quem sabe quais outros caminhos poderão se abrir?
