
A Copa do Mundo Feminina de Futebol, realizada na Austrália e Nova Zelândia, chegou ao fim em 20 de agosto, com a Espanha conquistando seu primeiro título mundial. Você estava ciente? Acompanhou o evento? Sabia onde estava sendo realizado? Quais foram os destaques do torneio? Como foi a trajetória do Brasil? Provavelmente não. Eu mesma quase deixei passar o evento, o que seria uma pena. Sempre acompanhei edições de Copa do Mundo, porém nunca havia assistido a uma partida de futebol feminino, tampouco tinha plena consciência da existência da Copa Feminina. Possivelmente estava influenciada pela narrativa de que o futebol feminino é chato, ruim, uma piada.
Entretanto, ao acompanhar os jogos e conhecer a história do esporte, muitas situações se tornaram mais claras. Eu sabia que o começo do futebol no Brasil foi marcado por elitismo e preconceito contra as classes menos favorecidas e pessoas negras, bem como contra as mulheres. Contudo, desconhecia o fato de que na década de 1920, partidas de futebol feminino eram atrações circenses em diversos estados. Além disso, não tinha conhecimento de que, em 1941, o governo Getúlio Vargas proibiu o futebol feminino através do decreto-lei número 3.199, argumentando que “às mulheres não é permitido praticar esportes que sejam incompatíveis com sua natureza”, alegando que isso poderia “afetar gravemente o equilíbrio psicológico das funções orgânicas”, o que significava dizer que poderiam afetar sua fertilidade. Tais justificativas “científicas” eram meramente um disfarce para encobrir o preconceito, especialmente considerando que muitas das jogadoras vinham de camadas sociais mais baixas. Somente no final dos anos 70 essa lei foi revogada, e somente em 1983 a modalidade foi regularizada. Em outras palavras, durante o auge da seleção masculina brasileira, o futebol feminino não era permitido, muito menos se cogitava a ideia de uma seleção feminina.
Superamos a era do decreto-lei, porém a ausência de investimento e estrutura persiste como uma forma contemporânea de discriminação, uma vez que impede que o esporte alcance seu real potencial. A comparação injusta e cruel com o futebol masculino, que leva as jogadoras a serem alvo de piadas, deriva de décadas de desigualdade, mas perpetua a crença de que os homens têm uma predisposição natural para o esporte. Existe um grande atraso em relação ao futebol masculino, o que se reflete na preparação de jogadores e jogadoras, já que os garotos começam a treinar nas categorias de base desde muito cedo, enquanto as meninas têm um início mais tardio, tendo menos tempo de preparação. Além das carências estruturais, a sociedade oferece pouco estímulo para que elas sigam nesse caminho, muitas vezes as incentivando a praticar outros esportes, por medo de serem rotuladas como “masculinas”.
Voltando à Copa do Mundo, comecei a acompanhar por curiosidade, talvez semelhante àquelas pessoas que frequentavam circos no passado, contudo, ao fim do torneio, eu estava acordando mais cedo para acompanhar as partidas. O que provocou essa mudança? Não tenho certeza, mas sei que testemunhei jogos emocionantes, lances espetaculares, gol olímpico, mas também presenciei partidas com baixo nível técnico, erros gritantes, aspectos inerentes ao jogo. Talvez a mudança esteja na maneira como passei a enxergar o futebol feminino em si, não apenas como uma manifestação de resistência, mas também como um espaço social que as mulheres estão começando a conquistar com muito esforço. Vê-las enchendo estádios, sendo reconhecidas como seleções nacionais, sendo celebradas e, simultaneamente, sendo avaliadas por sua performance no esporte, não apenas por estarem praticando-o, transformou minha experiência em algo semelhante a apreciar um espetáculo de Copa do Mundo, e não uma atração de circo. Claro, me deparei com comentários grosseiros, machistas, homofóbicos e misóginos, mas isso não diminuiu a importância do que eu estava presenciando.
Porém, nem tudo são flores. Durante a celebração da conquista do título, um episódio chama a atenção. Durante a cerimônia de premiação, o presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, beijou a atacante Jenni Hermoso na boca. Ao presenciar isso, senti um profundo desconforto, mas desejei acreditar que eles fossem um casal, porque, ingenuamente, não queria admitir a possibilidade de estar vendo um assédio puro e simples transmitido para o mundo inteiro. Desapontada, porém não surpresa, descobri que a segunda interpretação era a correta. O incidente continua repercutindo na Espanha, mas é triste constatar que as mulheres permanecem vulneráveis, mesmo nos momentos mais felizes de suas vidas, mesmo diante de inúmeras câmeras e milhões de testemunhas. Ao mesmo tempo, é reconfortante ver as manifestações de solidariedade por parte das outras jogadoras, que, em suas declarações de apoio, empregaram uma expressão poderosa: ‘Acabou’. Ainda há um longuíssimo caminho pela frente, no entanto, saio dessa experiência com a esperança de que, pelo menos em relação à expressão “futebol não é coisa de mulher”, estamos, de fato, um pouco mais próximos do fim.
